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As luzes se apagam. Lentamente somos cercados por um brilho estelar e envolvidos pelo som insinuante de uma orquestra. Os metais anunciam e desafiam.  

Pã-pãpã-pã-pã-pã-paam-rampã-pãpã-pã-pã-pã-paam-ram

Eis que sem que ninguém diga, você já sabe: o tempo acabou e o Espaço é o Lugar (Sun Ra em Space is the Place, John Coney, 1974). 

Sun Ra rege, a voz de June Tyson profetiza, a Arkestra é a espaçonave, e a música é o que “teletransporta o planeta inteiro” para o espaço sideral, inaugurando o nosso destino alternativo “do outro lado do tempo” (Todos os trechos de músicas e filmes foram livremente traduzidos do inglês para o português para este texto). Estamos Depois do Fim do Mundo (It’s After the End of the World, Sun Ra, 1970) – e todes já sabemos. 

Assim como sempre soubemos que as naves pousaram muito tempo atrás (BOULD, Mark. (2007). The Ships Landed Long AgoAfrofuturism and Black SF. Science Fiction Studies, 34(2), 177-186.) e nos sequestraram, deixando nossos rastros por todo o Atlântico Negro. Mas a música negra refez a Travessia ancestral juntando os nossos escombros, e reconectou as almas dispersas pelos colonizadores. Afinal, também todes já sabemos que “o primeiro toque de ficção científica foi quando os escravizados tentaram usar tambores para se comunicar a distância” (DJ Spooky em Last angel of historyJohn Akomfrah, 1995.). O tambor é o código, é a tecnologia. E a música é a linguagem espiritual – infinita e cosmológica. (Essa não é uma história de abdução, mas de fugas).  

A voz de June Tyson nos orienta e acalma em nossa jornada intergaláctica:  

Encontre o seu lugar entre as estrelas

Entre neste mundo exterior

Ritmo, multiplicidade

Harmonia, equacional

Velocidade do horizonte da melodia

Astro preto e cosmos escuro (Astro Black, Sun Ra, 1972)

O tempo acabou. E aqui, no espaço, o mistério prevalece sobre a história. O mistério é a minha história (my-story) e não a história dele (his-story) – ressoam no abismo do infinito as palavras do Deus do Sol. O mistério está também em repetir com disciplina e exaustão cada melodia com microvariações – cada vez menores, acreditando no milagre e na beleza que cada uma dessas pequenas vibrações sônicas pode criar. 

Nutrida desse som de milagre e beleza, a nossa jornada afrojazzdiaspórica movimenta espaços múltiplos do Egito Antigo a Saturno. Estamos em África e no Espaço Sideral ao mesmo tempo, porque aqui tudo é copossível. Origem e destino final estiveram sempre juntos. E Sun Ra nos lembra que ele também esteve sempre lá. 

 Quando o mundo estava em trevas

E escuridão era ignorância

Junto veio Ra

O mito vivo

O mistério vivo (have many names, Sun Ra em Sun Ra: A Joyful Noise, Robert Mugge, 1980).

O mito vivo e sua mitocracia espacial nos embalam em sua música redentora. E contemplando o cosmos escuro ao nosso lado, o Deus do Sol nos lembra de que nós, as pessoas negras, nunca existimos e nem fomos reais no planeta Terra. Nós, como ele, somos mitos: um sonho sonhado anos atrás por nossos antepassados (Sun Ra em Space is the Place, John Coney, 1974.). Somos afrofuturos em ato ou “sonhos de futuros passados” (Queer Times, Black Futures, Kara Keeling, 2019). Sua música nos conclama a sermos juntos: mito e mistérios vivos. 

O tempo acabou, nós não existimos. Sim, essa é uma jornada radical rumo ao impossível e ao infinito da plenitude de ser com o Universo. Ou simplesmente mais uma jornada rumo à utopia preta. Uma jornada em que a música de Sun Ra e de sua Arkestra, na voz suave de June Tyson, nos transmoleculariza e teletransporta. Eles nos movem além e aquém da velocidade da luz para sermos mais do que humanos, mais do que terrestres. Para sermos mais uma entidade no infinito cosmológico. E sermos para além do tempo (ele já acabou!) e no espaço total. Sermos em liberdade.  

Pã-pãpã-pã-pã-pã-paam-rampã-pãpã-pã-pã-pã-paam-ram

Então, feche os olhos e abra os ouvidos: o omniverso é você. Chegamos! 

 

Kênia Freitas é pesquisadora e crítica de cinema. Fez estágios de pós-doutorado em Comunicação na UCB (2015-2018) e na Unesp (2018-2020). Doutora em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ (2015). Realizou diversas curadorias, entre elas a das mostras “Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica” (2015), “Diretoras Negras no Cinema brasileiro” (2017-2018), sessão “PretEspaços” na LÂMINA — Mostra Audiovisual Preta (2021) e sessão “Movimentos fabulares” na mostra Cinema Brasileiro: Anos 2010, 10 Olhares. Integrou as equipes curatoriais do IX CachoeiraDoc (2020) e Festival de Cinema de Vitória (2018). Escreve críticas para o site Multiplot!. Ministra cursos e oficinas sobre crítica, cinema negro, afrofuturismo e fabulações.